Problemas estruturais distanciam alunos do Enem, dizem especialistas

Único jornal diário gratuito no metrô


As inscrições
 para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a principal porta de entrada para a educação superior no Brasil, terminam nesta sexta-feira (16). E, embora o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) ainda não tenha dado detalhes sobre o número de pessoas que se inscreveram para as provas deste ano, a tendência nos últimos anos foi de redução.

O total de pessoas inscritas para o Enem vem caindo desde 2017, mas o recuo se intensificou nos últimos anos. O recorde de inscritos foi em 2014, quando mais de 8,7 milhões de pessoas se candidataram para fazer as provas. Em 2017, mais de 6,1 milhões de pessoas se inscreveram. Mas, em 2022 esse número caiu para quase a metade, com pouco mais de 3,3 milhões de candidatos.

Agravado pela pandemia do novo coronavírus, o ano de 2021 foi o que apresentou o menor interesse pelo Enem desde 2005, com apenas 3,1 milhões de inscritos. O total foi inferior até ao ano de 2009, quando o exame passou a permitir a entrada na maioria das faculdades. Antes disso, o Enem era feito apenas para testar os conhecimentos dos concluintes do ensino médio.

Afastamento

Vários fatores podem explicar o que tem afastado os jovens e adultos do Enem. Mas, com certeza isso não se deve a um fator subjetivo, disse a professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Ana Karina Brenner.

“É uma questão multifatorial e estrutural. Vem caindo desde 2015, mas recuou mais acentuadamente a partir de 2017, quando o Enem deixou de ter a dupla função que ele tinha: de avaliador que pontuava para dar ingresso ao ensino superior e também de certificador de conclusão do ensino médio. Tinha muita gente que se inscrevia para fazer o Enem não porque estava disputando uma vaga no ensino superior, mas porque estava tentando se certificar para o ensino médio, que era um diploma importante para abrir portas para o mercado de trabalho”, explicou Ana Karina, em entrevista à Agência Brasil.

Mas, além da perda de sua função de certificador do ensino médio, outros fatores ajudam a explicar o aumento do desinteresse dos jovens e adultos pelo Enem. E um desses fatores é a dificuldade desses jovens conseguirem concluir o ensino médio.

“Para fazer o Enem é preciso ter concluído o ensino médio. Os dados da Pnad [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio] mostram que a gente ainda tem um problema sério na produção de conclusão do ensino médio”, afirmou.

Renda

A especialista acrescentou que outro problema apresentado nos últimos anos é que muitos jovens concluem o ensino médio, porém, não fazem imediatamente o Enem: deixam para algum tempo depois.

“Alguns consideram muito difícil fazer a imediata transição entre ensino médio para a universidade. Então, deixam o Enem para mais tarde. Não se sentem preparados para enfrentar o Enem quando concluem o ensino médio. E acham que vão precisar de mais tempo com formações complementares e estudo adicional, até que consigam enfrentar essa prova”, destacou.

Essa postergação do Enem se relaciona também a outro grave problema: muitos jovens precisam abandonar os estudos para obter renda imediata para sobrevivência.

“Há questões de qualidade de formação do ensino médio, tem o fim da dupla função do Enem em não ser mais um certificador, mas também tem falta de apoio às trajetórias juvenis na produção de sucesso escolar e de conseguir transitar para a vida adulta, conseguindo se sustentar e estudar ao mesmo tempo. A dimensão de estudo e trabalho simultâneos é muito presente para os jovens”, explicou Ana Karina.

“O trabalho é tanto produtor de renda para sobreviver como também tem dimensão formativa. Então, o trabalho é desejado por muitos jovens e, um problema importante é que, para muitos, o trabalho impede o estudo. Então, a necessidade de trabalhar para ajudar no sustento da família muitas vezes acaba impedindo a continuidade dos estudos. E há falta de políticas de apoio a essas trajetórias que permitam a ele [jovem] estudar sem ser disputado integralmente pelo mundo do trabalho, o que acaba atrasando ou impedindo que ele chegue ao ensino superior”, arrematou ela.

Problema esse que tem afetado principalmente a população mais vulnerável, destacou o frei David Santos, diretor executivo da Educafro Brasil, também em entrevista à Agência Brasil.

“Vários fatores explicam a queda nas inscrições do Enem. Mas o fator que mais me preocupa é que todos os jovens que foram motivados a entrar nas universidades por meio de cotas para negros, brancos pobres, indígenas e quilombolas, entram com grande entusiasmo. Acontece que o governo, que tinha prometido lançar programas de bolsa moradia e de bolsa alimentação para todos os [estudantes] pobres que ganhassem até um salário-mínimo e meio por renda per capita, não cumpriu”, observou ele.

“Nas minhas andanças pelas universidades do Brasil, descobri algo espantoso: de cada 100 jovens afro-brasileiros que entraram nas universidades até 2019, 30 tinham abandonado [os estudos] por falta de bolsas moradia e alimentação. Com a pandemia, nossa estimativa hoje é ainda maior, de que mais de 60 deles já tenham abandonado a universidade”, lamentou o frei.

“O jovem que sai da sua casa feliz para vencer e volta arrasado, [ele] gera em todo o seu ciclo de convívio total [descrédito]. Por isso, estamos apelando ao governo federal para garantir que todo jovem [vulnerável] que entre em uma universidade federal tenha bolsa moradia e bolsa alimentação para dar conta de manter o estudo e de melhorar o Brasil. O Brasil não vai ser melhor se não tiver jovens se formando”, disse ele.

Pandemia

Todos esses problemas estruturais ainda foram agravados por uma pandemia do novo coronavírus. “A pandemia aprofundou a dificuldade de conclusão do ensino médio com o momento da inscrição do Enem e aprofundou dificuldades da formação”, salientou Ana Karina.

“Tem outro dado importante de ser observado que é o fato de o MEC [Ministério da Educação] ter instituído uma punição nos anos de pandemia para quem faltasse à prova. Quem faltasse ao Enem, no ano seguinte não teria direito à isenção da taxa de inscrição. Mesmo que essa punição agora não exista mais, pode estar ainda presente no imaginário dos jovens de que eles não têm direito à isenção por terem faltado e precisariam pagar pelo exame, mesmo sem ter dinheiro para pagar”, argumentou ela.

A tudo isso, destacou Ana Karina, ainda se somam uma crise econômica e uma reforma do ensino médio que foi “nefasta. O mundo de maiores incertezas vai também produzindo dificuldades nos jovens de pensar no futuro e imaginar as possibilidades de suas escolhas. Com a crise econômica, isso fica ainda mais difícil. ‘O que eu vou estudar e que vai me dar possibilidades de efetivamente ter um trabalho que me sustente?”, questionou.

Esperança

Para a educadora, mudanças são necessárias para que os jovens voltem a se interessar pelo Enem. “Precisamos oferecer esperança aos jovens. Tem muito de estrutural na impossibilidade de se inscrever no Enem. Não é subjetivo. É muito difícil enfrentar essa prova de vida”, assegurou.

“A Educafro [Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes] faz uma tremenda campanha para motivar a juventude a se inscrever no Enem. Mas o índice de retorno é muito pequeno porque eles não estão acreditando que o Enem será a porta do sucesso como é a imagem vendida para a classe média. Para a classe média, o Enem está perfeito: é realmente a porta de sucesso e dá acesso a uma universidade gratuita. Para o pobre não está sendo. Estou em negociação com o ministério [da Educação], por exemplo, para que este ano seja a última vez em que o período de isenção da taxa de Enem seja diferente do período de quem pode pagar. O MEC joga o período de isenção bem mais cedo. E a imprensa faz propaganda quase zero sobre esse período de isenção”, reclamou frei David.

Para ambos, os jovens precisam ter esperanças de mudanças, esperanças na construção de um futuro melhor, para voltar a se interessar pelo Enem e pelo ensino superior.

“Os jovens precisam ter novas esperanças sobre possibilidades positivas de futuro. As escolas estaduais precisam ajudar os jovens a chegar ao Enem, a encontrar o Enem e fazer a vinculação entre a conclusão do ensino médio com a inscrição ao Enem e dar suporte para o enfrentamento dessa prova. Temos no Brasil uma dinâmica de pouco apoio de políticas públicas aos jovens e suas famílias e, portanto, o custo de enfrentamento aos desafios da vida é muito alto para as famílias. As famílias estão muito sozinhas na garantia das possibilidades de chegar a novas etapas da vida e de enfrentar os riscos e os custos dessas novas etapas da vida”, finalizou Ana Karina.