Coletivos lésbicos fortalecem redes de mulheres nas periferias


Espaços de trocas, de formação, de resistência, de acolhimento e, também, de alegria e diversão. Nas periferias brasileiras, mulheres lésbicas criam coletivos e organizações e se fortalecem, juntas, na busca pela garantia de direitos. Para marcar o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, a Agência Brasil conversou com algumas dessas mulheres, que mostram a necessidade de se dar voz e garantir políticas públicas voltadas para a saúde, moradia, segurança pública, entre outras, especificamente para esse grupo.  

Na cidade do Rio de Janeiro, na Maré, complexo de 16 favelas na Zona Norte, está a Casa Resistências, espaço de acolhimento voltado para mulheres lésbicas, bissexuais e trans moradoras de favela, criada em 2022. O espaço recebe também mulheres negras e mulheres imigrantes independente da orientação sexual, criado a partir da Coletiva Lésbicas da Maré, formada em 2016, em agosto, no mês da visibilidade.  

“A ideia era de sociabilidade, isoporzinho, roda de conversa, para falar de vivência, de como estava sendo para a gente ser sapatão na favela”, conta a assistente social, coordenadora da Casa Resistência e fundadora da Coletiva Lésbicas da Maré, Dayana Gusmão.

Logo, as demandas foram crescendo e foi crescendo também a atuação da coletiva, que ganhou um tom mais crítico, voltado para a garantia de direitos. Mulheres que eram expulsas de casa por não serem aceitas pelas famílias por conta da sexualidade, buscavam a coletiva para receber apoio. Durante a pandemia, isso se intensificou, porque as pessoas passavam mais tempo em casa e acabavam sendo descobertas. Em 2022, a Casa Resistências virou um espaço físico para receber essas mulheres.  

“A mulher negra hoje é jogada para um espaço de solidão absurdo e quando tem cruzamento de lésbicas e negras da favela, esse espaço de solidão é quase duplo. Quando meninas mais novas que olham para coletiva e veem que não estão sozinhas, quando vejo casa cheia de lésbicas novinhas convivendo com mais velhas, essa é a importância da coletiva, é servir como farol para lésbicas na favela perceberem que não estão sozinhas”, diz Dayana.  

Foi essa rede que trouxe a vice-coordenadora da casa de acolhimento, Camila Felippe, para a Coletiva Lésbicas da Maré. Ela relata que entrou no grupo em 2019. “Foi quando começo a virar a chave de entender que minha militância, enquanto mulher favelada e mulher negra, não pode estar dissociada de mulher sapatão”, diz. Segundo ela, o grupo tem demandas específicas, diferentes das demandas da população heterossexual e também das lésbicas não periféricas.

“A partir do momento em que somos vistas e notadas, vão começar a questionar sobre o que precisamos ou não precisamos, enquanto não conseguirmos isso, não conseguirmos nossa visibilidade, nossas questões não serão ouvidas, não serão de interesse.” 

O espaço recebeu, neste ano, a medalha Chico Mendes, premiação voltada para homenagear pessoas ou grupos que lutam pelos diretos humanos. A psicóloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Beatriz Adura, que coordena o acolhimento explica que a casa adota um modelo chamado antimanicomial. Quem chega ali, recebe a chave de casa e pode ir e vir quando quiser. “É um projeto de morada, é uma casa, para que meninas expulsas de casa possam ter um lugar confortável, um lugar acolhedor”, diz. 

Tambores e ativismo 

Na periferia de Fortaleza, foi criada, em 2010, a Tambores de Safo, pela iniciativa de mulheres lésbicas e bissexuais com o objetivo de dar visibilidade às demandas específicas dessas mulheres na 11ª Parada pela Diversidade Sexual do Ceará. “Foi quando a gente se reuniu e começou com oficinas de confecção dos instrumentos e, nesse processo de oficina de confecção de instrumentos, a gente fazia uma formação política entre nós, lésbicas e bissexuais, que estávamos presentes”, afirma Lídia Rodrigues, que faz parte da Tambores desde a fundação.  

Com oficinas, músicas e espetáculos, a Tambores foi ganhando espaço e dando voz a mulheres lésbicas e bissexuais periféricas. “Somos periféricas, então, nossa construção é a partir das periferias”, diz Rodrigues. “É uma dimensão forte, porque a realidade de uma lésbica periférica é muito diferente da lésbica de classe média, são muitas questões e muitas camadas de opressão que se cruzam, desde o acesso a saúde, do acesso à educação, acesso à transporte, à violência policial. Então, a gente tematiza e evidencia muito sermos lésbicas periféricas”.  

Rodrigues conta que se reconheceu lésbica aos 21 anos. Nessa época, já integrava movimentos feministas. As lutas, somaram-se. “Comecei a militar por direitos de crianças e adolescentes, depois conheci o feminismo, me reconheci negra e, posteriormente, sapatão. Tive, então, o diagnóstico de transtorno do espectro autista. Comecei a me entender como sapatão negra autista. A partir da vida fui me identificando e percebendo o que isso trazia de agravo e de benesses e fui engajando essa vida numa luta política, numa construção de tentativa de transformação da realidade.”  

A Tambores criou dois espetáculos – Tambores que ecoam contra todas as opressões (2011) e A Voz do tambor periférico (2019) [LINK: https://www.youtube.com/watch?v=yGps-rhby0U], além do bloco de carnaval Cola Velcro. Também são várias as músicas e clipes gravados. Hoje, a Tambores de Safo, integra o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Ceará. 

Entre as músicas e clipes, Rodrigues destaca Sapatão de Favela, cuja letra define: “Sou sapata de favela, negra, mãe e sou artista. Minha arte me compõe. Sou uma ruma de coisa, que nem cabe nessa lista”. Como diz a letra, Rodrigues diz que a arte é o diferencial da Tambores. “A arte é ferramenta e também método de ação, afetação e transformação da realidade. O tambor resgata ancestralidade, dialoga com nossos oris, com nossa espiritualidade. Tem poesia, música, jogo cênico e a dança. Tudo isso é político, não é simplesmente estético. E, por ser política e estética, é transformadora e construtora de uma ética.” 

Segundo a integrante do grupo, isso faz com que as pessoas se engajem e recebam bem a Tambores. “A gente construiu o bloco Cola o Velcro, quando bota o bloco na rua, com músicas que problematizam a lesbofobia, tem pessoas que inclusive são heterossexuais e que engajam porque a alegria, ela agrega”, diz Rodrigues.  

Lésbicas Amazônidas  

Em Belém, em 2018 é criado o Coletivo Sapato Preto, grupo de lésbicas negras amazônidas. O nome do coletivo, como explica a cofundadora, a advogada Darlah Farias, busca ressignificar as palavras “sapatão e preta” que historicamente eram usadas para ofender mulheres negras lésbicas. Já as amazônidas, são aquelas que de alguma forma pertencem ao território, sem necessariamente terem nascido na Amazônia.  

Para Farias, o coletivo é a realização de um sonho e é, segundo ela, o primeiro e único coletivo de lésbicas negras de Belém.

“O Coletivo Sapato Preto é um sonho de realização porque, quando comecei a visualizar essa movimentação de mulheres lésbicas e negras construindo para si esse espaço, eu comece a tomar isso como uma construção pessoal. Comecei a entender que estava construindo um espaço para mim também, um espaço não só político, mas pessoal, de experiência de vida e de crescimento.” 

O coletivo realiza formações não apenas em Belém, mas em outros municípios do Pará, atua em comunidades quilombolas e territórios de matriz africana, sempre com a perspectiva racial e de gênero. Em 2020, com a pandemia, a Sapato Preto começa também a realizar um trabalho de base para garantir auxílio alimentar e realizar outras ações para fortalecer essas mulheres.  

Farias atua hoje junto ao governo do Pará, como coordenadora estadual dos Direitos das Pessoas LGBTQI. “Hoje sou a primeira mulher negra e sapatão, no cargo de coordenação LGBTQI do estado e, pela primeira vez conseguimos colocar dentro do estado uma ação da visibilidade lésbica, voltado para lésbicas, com palestras para lésbicas. Isso é reflexo de Sapato Preto na minha vida”, diz.  

Segundo Farias, um coletivo lésbico voltado para mulheres negras e periféricas é importante para dar visibilidade para demandas específicas desse grupo, como acesso a moradia, acesso à saúde pública, questões também ambientais e de sustentabilidade.  

“Como essas mulheres lésbicas estão experienciando isso dentro dos territórios e das periferias? Como estão acessando os programas de moradias, se somos as primeiras a sermos expulsas de dentro de casa, como acessam o cadastro de moradia, de habitação? Falar da urgência de mulheres que amam outras mulheres, que quebram essa lógica normativa e, ainda dentro desse grupo, mulheres negras lésbicas, que ainda passam pela questão do racismo ou mulheres trans lésbicas, experiências que são ainda mais diferenciadas, com lesbofobia, transfobia”.  

Lugares seguros de convivência 

No Distrito Federal, em 2005, nasce a primeira organização lésbica feminista do DF, a Associação Lésbica Feminista de Brasília – Coturno de Vênus. “Existia à época, e ainda é comum entre as lésbicas, a necessidade de compartilhar experiências, formação, discutir e propor políticas públicas para lésbicas e construção de lugares seguros de convivência”, diz Melissa Navarro, uma das fundadoras da Coturno, que é arte educadora, microempresária e atua na militância e ativismo LGBTI+ desde o final dos anos 1990.  

A Coturno baseia as ações e atividades em cinco eixos principais de atuação: articulação, formação e incidência política; cuidado e segurança coletivos; cultura e memória lésbica; visibilidade lésbica e direito à cidade; sustentabilidade econômica e educação. Em agosto, quando comemoramos o mês da Visibilidade Lésbica no Brasil, a Coturno desenvolve várias atividades em parceria com outras organizações do DF e do Brasil.  

“O mês de agosto é importante para termos mais visibilidade e poder auxiliar jovens lésbicas e sapatões, que ainda não têm o apoio da família e sofrem diversos tipos de violências, para que tenham mais informações sobre seus direitos e como se proteger”, diz Melissa.  

Para ela, os avanços são ainda poucos e instáveis, pois não há uma legislação definitiva pra garantia dos direitos das mulheres lésbicas. “No DF, não temos nenhuma legislação que combata a lesbofobia, existem leia estaduais e municipais, mas não nacionais. Nacionalmente, utilizamos as jurisprudências para nós proteger”, ressalta. Nesta terça-feira, uma conquista é de que haverá a primeira sessão solene na Câmara Federal em virtude ao Dia Nacional da Visibilidade Lésbica.  

Visibilidade Lésbica  

Agosto é o Mês da Visibilidade Lésbica, com duas datas, o dia 19, que é o Dia do Orgulho Lésbico, e dia 29, que é o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. O dia 29 foi escolhido por ser a data do 1° Seminário Nacional de Lésbicas, em 1996, promovido para chamar a atenção para as pautas do grupo e para as violências sofridas.  

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pelo menos 0,9% das mulheres brasileiras declara-se lésbica e 0,8% bissexual. Entre 2021 e 2022, a Coturno de Vênus e a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) realizaram o Lesbocenso Nacional, para conhecer o perfil das mulheres lésbicas brasileiras. Os dados mostram que 37,1% residem em bairro de classe média; 13,83%, em periferias; 2,8%, na zona rural; 1,7% em favelas e, 0,8% em comunidades quilombolas e 0,04% em aldeias indígenas.

A maior parte dessas mulheres, 78,61%, sofreu lesbofobia, ou seja, discriminação por serem lésbicas.